Bolsonaro inaugurou seu governo em 1º de janeiro de 2018 sob a suspeita de ter embolsado parte dos salários que deveria ter pago a funcionários do seu gabinete na Câmara dos Deputados ao longo de quase 30 anos. A tal da rachadinha. Dinheiro público com destinação obrigatória. Assim, ele começou a enriquecer.
Bolsonaro terminou seu governo em 30 de dezembro de 2022 sob a suspeita de roubar joias e artigos de luxo presenteados ao Estado brasileiro por chefes de governo de outros países. Apenas o valor de dois relógios é estimado em 100 mil dólares, o que equivale a um ano e meio de salário presidencial.
Fez de um almirante da Marinha, ministro das Minas e Energia, o muambeiro que lhe trouxe as joias escondidas no fundo da mala. Fez de um general do Exército, do tenente-coronel filho do general, de um primeiro-tenente e de outros assessores, camelôs ocupados no estrangeiro com a venda das joias para aumentar sua fortuna.
Não há crime perfeito, há crime mal investigado. E uma vez que a Polícia Federal descobriu o roubo das joias, Bolsonaro ordenou que fossem recompradas para devolvê-las ao patrimônio do Estado, fingir-se de inocente e escapar de ser condenado e preso como ladrão e chefe de organização criminosa. Seria o seu fim.
Seria o fim da carreira de um homem que muitos brasileiros ainda acreditam que foi enviado por Deus para salvar o país. Um homem que, na véspera do estouro do escândalo, foi elogiado pela própria mulher como tendo operado o resgate do patriotismo e plantando “uma semente no coração das nossas crianças”.
Que boa semente ele plantou no coração de crianças e adultos? A recompra das joias custou mais do que ele ganhara com a venda. Mas logo o prejuízo virou lucro. Bolsonaro apelou para doações a pretexto de pagar multas que devia. Devia algo como 1 milhão de reais. Apurou 17 milhões de reais. Não pagou as multas.
O legado de Michelle, como ela disse, “foi ter dado visibilidade aos invisíveis, trabalhando pelas mamães atípicas”. A Polícia Federal pediu a quebra do sigilo bancário e fiscal do casal exemplar; exemplo de bandidagem, de cafajestice, de emporcalhar com denúncias falsas a honra alheia, e de desprezo pelas leis.
Dificilmente, Michelle será presa. Dir-se-á que ela ignorava as falcatruas do marido, era uma mulher do lar, evangélica, dedicada a cuidar da filha adolescente que o pai atribuía a uma fraquejada dele. Dificilmente, Bolsonaro não será preso. Jamais admitiu ter havido corrupção no seu governo, muito menos ser corrupto.
Por tudo que fez, merece, sim, ser chamado de corrupto. Tomem-lhe o passaporte para que não fuja. Vigiem-no.
Para Bolsonaro, pecha de ladrão de joias é pior que de genocida e golpista
O esquema para desviar joias que pertencem ao patrimônio do Brasil e vender para pessoas ricas ou em lojinhas do tipo “Compro Ouro” nos Estados Unidos, embolsando a grana ao final, tem mais potencial de ferir a imagem de Bolsonaro junto ao povão do que o seu negacionismo na pandemia ou seu golpismo eleitoral.
Claro que mais de 700 mil mortes por covid-19 e a tentativa de enterrar a democracia com a invasão e destruição das sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro são incomensuravelmente mais graves do que surrupiar alguns milhões em relógios, colares, estátuas e usar militares para vendê-los como camelôs.
A questão é que “ladrão de joias” é bem mais palpável do que “genocida” ou “golpista” para uma parcela da população, incluindo aquela que votou nele, mas não faz parte do bolsonarismo-raiz. Aquela que acreditou na narrativa de que Jair era um homem “honesto” e estava acima da corrupção.
Também é mais fácil criar dúvidas sobre as denúncias de que ele é corresponsável por milhares de mortes – apesar a grande quantidade de provas que Bolsonaro produziu contra si mesmo na pandemia. Da mesma forma, há quem caia facilmente na absurda história de que a tentativa de golpe de Estado foi um “inside job”, ou seja, algo planejado pelo atual governo para se vitimizar.
Como há chinelo velho para pé cansado, tem gente que se dá por satisfeito.
Agora, ser pego surrupiando ouro e diamantes que pertencem ao povo e embolsar, não precisa de muita explicação. Qualquer cristão conhece bem o “não furtarás” dos Dez Mandamentos no livro de Êxodo, capítulo 20, tanto quanto a história de adorar um bezerro feito de ouro e joias contada em Êxodo 32.
Durante as campanhas eleitorais de 2018 e de 2022, e também nos quatro anos de seu mandato, Bolsonaro se vendeu como um “homem comum” que representaria os interesses do povo mais do que os políticos profissionais. Claro que era uma construção, uma vez que ele, um político profissional, especializou-se em ficar rico dando à luz funcionários fantasmas nos gabinetes da família e ficando com parte de seu salário.
Mas esse personagem convenceu muita gente. Afinal, ele aparecia em vídeos oferecendo pão com leite condensado ao representante do governo dos Estados Unidos, deixando cair a farofa do frango sobre sua roupa, fazendo lives improvisadas com bandeiras coladas à parede com fita crepe, cometendo erros de português frequentes entre o povão para gerar empatia ao ser ridicularizado pela elite intelectual – que sempre cai em suas armadilhas.
Agora, esse personagem foi pego em um esquema que envolveu almirantes, sargentos, tenentes, coronéis e até um general para importar ilegalmente joias dadas de presente ao Brasil, depois usar todo o peso do governo fim de pressionar auditores da Receita Federal a liberarem a carga, daí mandar para fora e vendê-la. Segundo a Polícia Federal e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, era Jair quem determinava os rumos criminosos da operação. E quem se beneficiava dos dólares obtidos.
Como já disse aqui, para azar do ex-presidente e seu desejo de parecer um homem simples, o eleitorado tem mais facilidade de gravar na memória escândalos com produtos considerados de luxo, como diamantes e ouro.
Neles reside não apenas o absurdo do desvio da coisa pública, mas a utilização desses recursos para fazer do governante uma pessoa que desfruta de luxos a que a maioria da população nem sonha em ter acesso.
Não é à toa que as notícias que relatam concorrências públicas para fornecer camarão, lagosta, uísque e champanhe à despensa de presidentes, ministros, embaixadores e generais são tão clicadas pelo público.
Ou que detratores de Lula difundiram a farsa de que ele havia ganho um triplex no Guarujá de uma construtora como pagamento por negociatas na Petrobras em meio à operação Lava Jato. Triplex no imaginário popular é um lugar luxuoso e nababesco – na realidade, o apartamento em questão tinha 215 metros quadrados.
Então, como Jair Bolsonaro, que se vendia como um “homem comum”, um “homem do povo”, pode surrupiar joias de luxo que pertenciam ao governo brasileiro, vender para os ricos e ficar com o dinheiro?
Essa é a pergunta que será feita exaustivamente ao eleitorado que ele pretende influenciar, mesmo inelegível, nas eleições de 2024 e 2026.
Joias revelam o que significava diplomacia para Bolsonaro
As recentes descobertas da Polícia Federal sobre as manobras dos assessores de Jair Bolsonaro para permitir que joias entregues ao país fossem supostamente desviadas para enriquecer o grupo no poder são confirmações de que a diplomacia e a política externa tinham outros significados para o ex-presidente.
Em quatro anos, ele e seus ministros destruíram a reputação do Brasil no exterior, retiraram o país da mesa das grandes negociações e transformaram-se em párias.
Se de um lado o bolsonarismo usou a estrutura profissional do Itamaraty para atender ao movimento de extrema direita no mundo e promover uma guinada na política externa, sem qualquer base no interesse nacional, as revelações sobre o destino dado por presentes oficiais de outros governos mostram que a percepção do clã Bolsonaro era que o interesse privado prevalecia sobre o país.
Presentes dados por potências estrangeiras jamais têm como destino a pessoa que ocupa o cargo de presidente. Salvo, claro, se o objetivo não for nada republicano.
Ao se apropriar de joias que iriam para os cofres públicos, Bolsonaro confundiu seu papel como chefe de Estado. Ele não estava recebendo por ser Jair. Mas por ser Brasil.
Ao montar um esquema para desviar as joias, mostrou como simplesmente sequestrou a diplomacia. Depois, voltou a comprovar esse sequestro ao criar um sistema para revender e lucrar, inclusive no exterior.
Ao longo da história, emissários eram enviados para levar presentes de um reinado a outro, como um símbolo da amizade entre aqueles países.
Alguns ficaram famosos. A Estátua da Liberdade, enviada pelos franceses para os americanos, foi uma delas. Em 2011, a China construiu um estádio e deu de presente para a Costa Rica.
Em 1943, Winston Churchill entregou a espada para Stalin, como sinal do reconhecimento do esforço soviético pela batalha de Stalingrado.
A Holanda enviou mais de 20 mil tulipas para o Canadá, como agradecimento pelo fato de o país ter acolhido parte da família real durante a Segunda Guerra.
Mas, sem dúvida, o mais famoso dos presentes na história foi um cavalo. Em Tróia.